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terça-feira, 22 de junho de 2010

Meu velho Johnny England com Tabaco.

       Eu tive um tio-avô que trabalhou nos correios a vida inteira, mesmo depois do tempo de se aposentar. Pra aqueles que não sabem, isso é coisa pra caramba, ele viveu pra mais de 70 anos. Devia ser difícil acordar todas as manhãs, uma atrás da outra, com exceção dos domingos, e executar a mesma ladainha ritmada de lava rosto, penteia cabelo, põe a farda, se olha no espelho, passa a colônia Johnny England e ajeita o quepe antes de um cigarro de palha. É, ele era do tempo dos correios do quepe – e do cigarro de palha.
       Morei com ele quando era bem menor. Um fedelho de 12, mas parecia ter corpo de 16; sempre fui um cara gordo, grosso e calado. Não nasci pra ser criança também. Nunca tive aquele ar de quem precisa de proteção e carinho, eu me arranjava só; e meu tio sacava isso legal. Evitava cruzar comigo na casa e quase não havia conversa. Na verdade, pensando bem, nossa relação era construída mais por atos do que qualquer outra coisa. Se eu estava no quarto, lendo, e ouvia lá fora o rádio ligado no noticiário, era porque meu tio existia, e pronto. Os sons que produzíamos na casa de dois quartos é que nos lembravam mutuamente um da presença do outro. E ocasionais mudanças de objetos, tipo os pratos sujos na pia, ou os livros jogados na mesa da sala.
       Éramos do mesmo tipo de liga, aquelas pessoas que não são dadas a abraços e conversas inúteis. Éramos homens da praticidade, acima de tudo. Eu acordava todas as manhãs bem cedo e encontrava o café pronto, dinheiro pro ônibus da escola e era só. Ele certamente já tinha ido labutar entre selos e carimbos do estrangeiro fazia tempo. Às vezes eu tentava acordar mais cedo; surpreendê-lo com o café já coado quando ele fosse à cozinha pra coar; mas eu nunca consegui. Se fosse hoje e eu ainda morasse com ele, quem sabe... Estou experiente em café na madrugada, às vezes passo dias sem dormir. Às vezes é culpa do passado, me revolvendo com material pra escrever meus textos doídos. Às vezes é culpa da insônia. Às vezes é remorso. Às vezes são os três juntos, como hoje. Meu tio-avô morreu anteontem, depois de três dias na intensiva do hospital. Eu morei com ele três anos inteiros, sentindo seu Johnny England misturado com tabaco, todas as manhãs, quando ele saía pro trabalho e só o que ficava na casa era o cheiro; e eu. Mas não fui visitá-lo. Meu tio avô morreu anteontem, e fazia 20 anos que eu não o via. E agora nunca mais verei.

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