qualquer coisa grite meu nome:

segunda-feira, 22 de março de 2010

Coração Carnívoro Mastiga Novamente.

Eu moro no mesmo lugar que trabalho, no mesmo lugar em que toda minha família trabalhou e morou e morreu, um por um. A única alegria que eu tenho é ela. Ela que chega aqui e passa horas olhando os livros que vendo. São muitos livros. E toda vez que entra me faz a mesma pergunta, pra qual eu nunca tenho a resposta certa:

- Se um coração é carnívoro, alimenta-se do que?


Já quis responder-lhe que era das veias cavas; dos sentimentos roxos, ou céus sombrios; amigos perdidos nos bares, sofridos nos mares de lágrimas de veludo e sal. Mas a verdade é que eu não acho que ela compreenda nada disso. Eu mesmo não compreendo. Então o que faço é rir tenso e dizer-lhe que não sei. Ao que ela me olha de soslaio, meio triste até, e revida:

- Quando souber, mande-me a resposta dentro de uma garrafa. Um dia, estarei no mar e quando achar sua garrafa eu saberei que você conhece a resposta da pergunta da minha vida.

E então ela vai embora. Não imediatamente, não. Porque isso nunca faria sentido. Ela ainda fica um pouco por aqui e mais horas dentro de mim, mas de qualquer forma, ela não fala mais nada. Ela sabe que se falar qualquer coisa, a magia vai se perder. Ela sabe que se falar qualquer coisa eu nunca terei coragem de escrever nada na garrafa. Ela sabe. E todo dia depois que ela vai embora, procuro a resposta nos livros. Devorei Nerudas, Faustinos, Hemingways, Byrons, todos os grandes, tentando achar a resposta que ela perseguia. E nada aparecia no espaço vazio que era minha mente. Nada. Eu desistiria dos livros, na verdade. Se o sentido da vida não se encontra na poeira dos livros, então tudo se perdeu pra sempre.

Um dia, entretanto, meio que ao acaso encontrei uma encadernação simples, em couro verde, a capa comida pelo tempo, um enigma, sem nome. Sem nomes, sem autores. Mas aquilo era um sebo, de qualquer forma, não dá pra esperar muitas certezas em livros de sebos. E em livros de couro verde as coisas são ainda mais misteriosas, eu já tinha reparado. De qualquer forma, aquele era um exemplar muito velho e surrado de “Em busca do tempo perdido”, e tinha na contracapa uma dedicatória:

Amor, sublime amor.
Beleza vívida e maldita navalha do meu ser. Coração carnívoro que me devora, que se alimenta do meu viver. Você me tem, e eu jamais deixarei de ser seu. Simplesmente seu; eternamente seu; para todo o sempre...
Seu.


Foi então que todo o mundo da forma que o conhecia ruiu. Eu entendi do que o coração carnívoro se alimentava: de gente. Da gente, na verdade. Daqueles que são tolos apaixonados, mas vivos e apaixonados e felizes. Porque se amam de certa forma. E não vivem sozinhos em sebos malditos e cheios de livros e poeira e mortes de parentes nas costas cansadas do tempo. E eu fiz o mais sensato, arranquei aquela folha daquele livro e queimei todas aquelas palavras tristes, aquela antropofagia melodramática. E torci pra que eu nunca mais achasse garrafas vazias nas ruas. E pra que ela, que era minha alegria e minha vida, entrasse no sebo amanhã e não perguntasse coisa alguma, simplesmente dissesse que seu coração carnívoro se alimentava de mim.

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